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O Velho Chico

  • Mateus Machado
  • 8 de out. de 2016
  • 4 min de leitura

A MÍSTICA DAS ÁGUAS



Penso que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente (...) cada um de nós compõe a sua história cada ser em si carrega o dom de ser feliz”

- Almir Sater e Renato Teixeira (música – Tocando em Frente)


A Mística das Águas



A trágica morte do ator Domingos Montagner pegou a todos de surpresa, não pelo fato em si, mas pela aura mística que a envolve e vem sendo alimentada pela força mítica do Rio São Francisco. A comoção se espalhou por todo o país e um estranho fenômeno se manifestou quase que imediatamente; a sensação de que todos nós éramos íntimos de Domingos. Sua simpatia, a aura de bom moço, sua generosidade e sua humildade atrelados ao seu histórico; sua paixão pelo circo e sua carreira meteórica na Tv.


Mas o que nos levou a aproximarmos tão intimamente de um ator que, para a maioria de nós, até então poderia passar como anônimo? Uma vez que seu nome e sua carreira não eram conhecidos o suficiente para ter gravado na memória do coletivo a sua marca e o seu talento, como é o caso da própria Camila Pitanga ou de qualquer ator global da "casa".


Obviamente a mídia teve o seu papel em disseminar em todas as perspectivas e tons o acontecido, aproximando o ator para o mais perto de nós a medida que alavancavam a sua popularidade em doses intensas como analgésico para a dor de nossa perda. O pico da popularidade foi instantâneo; além da mídia tradicional, há também os youtubers, os videntes, os sensitivos, os conspiradores e toda uma fauna de comentaristas, fofoqueiros e críticos non sense.


Creio que a força que impulsionou Domingos para o alto veio das águas do Velho Chico; a mesma força que o puxou para o seu abismo de águas traiçoeiras. Para os índios da tribo Tafkea, Domingos foi escolhido pelo rio São Francisco para se tornar o seu "Protetor".


Dentro da mística indígena a Natureza, para proteger e perpetuar a alma tão castigada do rio, precisou sacrificar a vida do ator para um bem maior. Antes de nascer para uma nova vida, quem sabe mais plena, precisou passar pelo batismo das águas. Para alguns espiritualistas o ator, encerrado sua missão terrena, foi levado pelas divindades ligadas às águas, como Oxum, no panteão afro-brasileiro.


A morte de Domingos Montagner, em um país espiritualmente rico como o Brasil, toma dimensões simbólicas; ele é apenas mais um dentre muitos, o caso mais atual e conhecido devido a sua posição como ator de uma novela da Rede Globo. Sua morte está cercada de mistérios; como ter vivido o papel da personagem Santo e que, na trama da novela, foi salvo pelos índios de um afogamento nas águas do Velho Chico, para logo em seguida morrer quase sem máscara, sem véu, morrer simplesmente no papel de Domingos Montagner, nas águas do mesmo Rio.


Quando a vida se torna uma extensão da arte, nada se confunde, mas tudo se completa. Não poderia ter sido de outra forma. Domingos Montagner provou a morte simbólica no papel de Santo, para depois sua morte se elevar ao plano simbólico no Inconsciente Coletivo.


Embora a maioria de nós tenhamos a imensa dificuldade de lidar com as perdas, para o espírito de Domingos, morrer nos braços do Velho Chico pode ter sido uma dádiva. Se ele lutou, se ele se debateu nas águas selvagens do rio, foi por conta do natural instinto de sobrevivência, mas se transcendermos a isso, encontraremos algo muito maior, algo que, se não pode convencer familiares, amigos e admiradores, ao menos pode lhes dar um consolo, ainda que na dimensão dos mitos.


A morte não é o fim. Outras histórias virão, há outros papéis que Domingos ainda viverá quer seja nesta esfera ou em outra.


O que Ficou Para trás


Penso que a parte mais trágica desta história ficou para a atriz Camila Pitanga, que carregará pelo resto da vida. Mais do que qualquer familiar, esposa ou filhos, é a atriz que mais sentirá na carne, na alma, as dores dessa experiência entre o mundano e o sagrado.

Terá que continuar se apresentando ao público, à mídia, com o rosto velado pela dor, obrigada a responder às dúvidas de uma sociedade hipócrita, interpretando um papel que é para poucos; a de cúmplice de um ritual de morte e renascimento perpetrado pelas forças da Natureza. Apenas quando estiver sozinha com suas lembranças, turbulentas como as águas do rio, é que poderá confessar para si a medida do seu desespero, do seu medo, do seu sentimento de culpa, a sua guerra interna, sem máscara.

Infeliz é aquele que de alguma forma quiser criticá-la, condená-la. Camila não merece nenhum julgamento porque não há, em momento algum, nenhuma culpa ou condenação. Dificilmente a deixarão esquecer, não importa quantas sessões de terapia ela fizer. E ela carregará as águas do Velho Chico entranhadas em sua alma, águas doces que, de tempos em tempos, poderão vir à tona como lágrimas. Camila Pitanga viverá essa estranha e traumática simbiose com o Rio São Francisco.


Se Domingos passou pelo batismo das águas para se tornar o Protetor do rio, para Camila restou passar pelo batismo do fogo.


Para que?


Para que, vencendo essa prova, a sua luz possa se manifestar ao mundo ainda mais intensa.












 
 
 

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